A abordagem Human-Centered Design (HCD)

Human-Centered Design (design centrado no ser humano) é uma abordagem que coloca as necessidades das pessoas que interagem com um sistema no centro da análise. A ideia essencial é que, antes de desenhar uma solução para um grupo de pessoas, devemos mergulhar no delicado processo de compreender as suas perspetivas, expectativas e limitações.

Existem diversas ferramentas que podem ajudar-nos a atingir esse objetivo. [1] Uma delas é o estudo etnográfico, oriundo das ciências sociais e, mais particularmente, da antropologia. Embora os etnógrafos dos séculos passados utilizassem estas técnicas para estudar sociedades tradicionais, a antropologia contemporânea acredita na importância de examinar os rituais e valores das “tribos modernas” — consumidores, utilizadores, clientes. Nos últimos anos, este tipo de estudo tem migrado para fora da academia e conquistado notoriedade em contextos empresariais. [2]

No entanto, embora se tenha tornado uma buzzword, ainda existe muita incompreensão sobre as implicações de realizar um estudo etnográfico, bem como o lugar que o mesmo pode ocupar em projetos de Human-Centered Design.

 

O que é um estudo etnográfico?

“Etnografia – do grego έθνος, ethno – nação, povo e γράφειν, graphein – escrever.”

Etimologicamente, “etnografia” significa “escrever sobre um povo”. Na prática, trata-se da “descrição científica dos costumes de povos e culturas individuais” [3], isto é, um retrato dos rituais e valores de um determinado grupo humano.

Uma etnografia é, portanto, o resultado de um estudo qualitativo que busca compreender e descrever as práticas sociais e culturais de uma comunidade. 

Uma abordagem etnográfica, segundo o antropólogo Bronislaw Malinowski, parte da premissa de compreender os nativos através da “adoção do seu ponto de vista”. Segundo esta lógica, não existe melhor forma de compreender as pessoas do que inserir-se no seu contexto e ver o mundo através dos seus valores. O ambiente em que as pessoas operam, com as suas particularidades, pode ajudar a explicar o porquê da forma como elas pensam, falam e agem naquelas circunstâncias.

Nesse sentido, o esforço etnográfico materializa-se na realização de um trabalho de campo, que implica a ida dos investigadores ao terreno que querem estudar, por um período prolongado [4], de modo a examinar de perto as realidades que procuram compreender.

Quando os investigadores se encontram no campo, algumas das ferramentas que têm à disposição são as entrevistas e a observação participante. Através das entrevistas, podemos explorar mais a fundo os diferentes pontos de vista das pessoas presentes. Já a observação participante define-se por uma prática através da qual o investigador “entrosa-se” entre as pessoas, observando e participando das atividades como se fosse um membro do grupo.

Tradicionalmente, as informações recolhidas durante estes estudos vão sendo registadas num diário de campo (físico ou digital). O propósito deste diário é armazenar anotações, desenhos, imagens, sons, e demais material relevante para a pesquisa.

Ao realizar um estudo etnográfico junto aos Nuers – um grupo nativo do Sudão do Sul – o antropólogo Evans-Pritchard identifica que as conceptualizações do “tempo” na cultura local diferem das que conhecemos em sociedades ocidentais. Se fôssemos desenhar um relógio ou um calendário para os Nuers, portanto, teríamos que aprofundar os nossos conhecimentos sobre estas particularidades, de modo a garantir que a solução fosse adaptada às suas vivências. [5]

estudo etnográfico junto aos Nuers – um grupo nativo do Sudão do Sul

Os Nuers, tribo nativa do Sudão do Sul. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nuer_People,_1906.png

 

Como aplicar o estudo etnográfico a contextos de HCD?

O estudo etnográfico aparece aqui como uma excelente ferramenta para ser usada na fase exploratória de um projeto de HCD, já que permite conhecer melhor as expectativas e limitações de um grupo de utilizadores, trabalhadores e/ou clientes.

Em projetos de Service Design, isto torna-se muito claro: se quisermos melhorar a experiência de check-in num hotel, o primeiro passo é ir observar in situ quais são as oportunidades e dificuldades que surgem na ótica das pessoas envolvidas no processo. Posteriormente, fazemos uma análise fina dos padrões de comportamento e significados implícitos, de modo a definir qual é o problema que queremos solucionar. Embora tenham uma terminologia própria, os service designers fazem um trabalho muito semelhante ao dos antropólogos: vão ao terreno, observam, mapeiam e analisam as interações entre pessoas, artefactos e processos.

Ora, o valor do estudo etnográfico não se limita unicamente às fases exploratórias do processo de Design. Ao prototipar e testar o design de um espaço novo — tal como o lobby do hotel — técnicas de observação participante podem ajudar a revelar pontos de fricção e oportunidades de melhoria.

 

Vantagens

A pesquisa qualitativa permite-nos responder a questões do âmbito do “porquê”. Algoritmos de Big data podem ajudar-nos a identificar quantas pessoas reclamaram sobre o processo de check-in no nosso hotel nas redes sociais, mas apenas ao interagir com elas conseguimos compreender em profundidade o porquê de o terem feito.

Ao analisar e compreender tendências culturais (tais como a adesão a um novo serviço), conseguimos projetar soluções que respondam com precisão às necessidades dos clientes, garantindo a sua satisfação e fomentando a confiança no nosso trabalho.

Os resultados dos estudos etnográficos identificam desde cedo os problemas de raiz, evitando assim investir tempo e dinheiro em soluções inadequadas.

Por exemplo, ao constatar que as pessoas não gostaram da experiência de fazer check-in automático numa máquina na recepção do hotel, devemos tentar identificar o porquê. Uma hipótese seria descobrirmos que chegaram cansadas e famintas da viagem, a máquina tenha sido incapaz de opinar sobre onde poderiam comer a melhor francesinha da cidade, e elas tenham saído frustradas. 

Com base nisto, podemos aferir que ao chegar a um espaço novo, o nosso público-alvo valoriza ser acolhido pelo calor de um ser humano “de carne e osso”. Através deste insight, constatamos que não vale a pena investir em check-in automáticos, porque no fim de contas irá piorar a experiência das pessoas. [6] Sem estes dados, poderíamos ter gasto dinheiro em máquinas desnecessariamente.

Além disso, as ciências sociais podem enriquecer a investigação, em projetos de human-centered design, ao apresentar procedimentos e dicas para lidar com temáticas complexas, tais como boas práticas de observação participante, realização de entrevistas “sensíveis”, tratamento de dados pessoais (RGPD), levantamentos de necessidades, entre outros.

 

Limitações

É amplamente debatido por cientistas sociais como os resultados de um estudo podem ter um impacto direto na vivência das pessoas junto das quais trabalhamos e recolhemos informações. Investigadores e designers não podem presumir que a sua posição é “neutra” e isenta de responsabilidades relativamente ao produto final do seu trabalho. É importante ter consciência de que existe sempre accountability do investigador para com os participantes do estudo. [7]

Efetivamente, a chegada de um outsider a uma comunidade estabelecida pode representar uma disrupção ao desenrolar orgânico das atividades. Por esse motivo, a ideia de observação participante significa envolver-se no grupo sem juízos de valor sobre as práticas culturais que ali ocorrem.

Por exemplo, um investigador europeu que realiza trabalho etnográfico num campo de refugiados sírios irá provavelmente sobressair pelas suas diferenças culturais, o que pode ter um impacto no comportamento das pessoas. Do mesmo modo, ao observar e interagir com os colaboradores de uma empresa, um designer pode ser identificado como um outsider, o que pode gerar desconfiança e prejudicar o desenrolar da pesquisa.

Na literatura sobre antropologia existem referências de boas práticas para mitigar os efeitos dessa “desconfiança”, que vão de negociações de entrada no terreno, a maneiras específicas de se apresentar, até ao trabalho junto a um “mediador” insider, que ajuda o investigador a entrar e criar laços com os demais membros do grupo. [8]

Outra dificuldade que pode surgir ao realizar estudos etnográficos em contextos empresariais é a questão temporal. Conforme referido anteriormente, uma etnografia tradicional resulta de uma exposição prolongada à cultura estudada, de modo a extrair conclusões ricas e trabalhadas.

Em contextos de design corporativo, especialmente se estivermos a seguir metodologias ágeis, o timing tem que ser mais curto. Há quem argumente que estes estudos etnográficos rápidos levam a conclusões superficiais e rasas. Realmente, é um verdadeiro desafio encontrar insights profundos com prazos apertados.

 

“Tornar o familiar estranho e o estranho familiar”

Na sua essência, o pensamento etnográfico pode ser visto como um mindset. Como referem diversos teóricos, a antropologia é um exercício que permite “tornar o familiar estranho e o estranho familiar”. [9] Quando percebemos que existem inúmeras formas de comer, dormir, falar, sonhar, que nenhuma é melhor do que a outra, e que cada uma delas é altamente influenciada pelo seu contexto, é porque o bichinho da antropologia pegou. A partir daí, não há volta atrás.

Cultivar o pensamento etnográfico é um trabalho constante e que dá muitos frutos. Os insights que retiramos destes estudos podem ajudar a informar estratégias de design com base nas experiências reais das pessoas. Esta abordagem pode impulsionar, entre outras coisas, reduções de custos, mudanças de mentalidade e a criação de produtos/serviços que respondam às necessidades das pessoas e tenham um impacto positivo na sociedade.

O meu apelo final às organizações é o seguinte: proporcionem aos investigadores as condições para realizar estudos etnográficos em profundidade. Estes trabalhos requerem preparação, recursos, e uma equipa habilitada a observar, mapear e recolher dados qualitativos complexos. Compreender as perspetivas das pessoas não é só uma ideia bonita; é uma prática essencial para obter resultados contextuais, fidedignos e acionáveis para o design e para o negócio.

 

*Este artigo foi atualizado no dia 2 de setembro de 2020.


Notas de rodapé

[1] Uma das grandes mais-valias da abordagem HCD é a interdisciplinaridade que advém de ir beber conhecimento às engenharias, ao design, às ciências sociais e humanas, etc.

[2] Em parte, isto deve-se ao excelente trabalho da EPIC, comunidade de profissionais que partilham o objetivo de alavancar o valor da etnografia na indústria. No contexto do Design, a IDEO e Standford d.school tem sido pioneiras em advogar pelo uso do método etnográfico em projetos de Design Research.

[3] Ethnography: a creative tool for Human-Centered Design (consultado por última vez em 30 de Junho de 2020)

[4] Em contextos académicos, este período costuma ser de um ano ou mais, por oposição a contextos corporativos, onde o timing costuma ser mais curto.

[5] E.E Evans-Pritchard, Nuer Time-Reckoning, Africa: Journal of the International African Institute Vol. 12, №2 (Apr., 1939), pp. 189–216

[6] Este exemplo é hipotético.

[7] Hodgson, Dorothy L., Critical interventions: Dilemmas of accountability in contemporary ethnographic research (consultado a última vez em 30 de junho de 2020)

[8] Chugtai, Hameed, Entering the field in qualitative field research: a rite of passage into a complex practice world (consultado a última vez em 30 de junho de 2020)

[9] (‘Making the familiar strange rather than the strange familiar’ (Van Maanen, 1995:20)