“Para além da acessibilidade às TIC: a usabilidade” – artigo publicado originalmente em abril de 2012 na revista “Ingenium – A Engenharia Portuguesa em revista”

 

Há alguns anos, tive uma experiência insólita num aeroporto. Precisava de um daqueles carrinhos para transportar as malas. Vi a fila de trolleys, ordenadamente alinhados num dos cantos do amplo recinto de recolha de bagagens, e decidi deixar a família a vigiar a chegada das malas, enquanto ia buscar um desses carrinhos. Rapidamente percebi que teria de retirar o último da fila – tal como acontece nos hipermercados – puxando-o para trás. Mas o carro não se moveu. Talvez estivesse preso por alguma razão. Para meu espanto, também o trolley disponível numa segunda fila estava bloqueado, e por mais força que fizesse não conseguia movê-lo mais do que alguns centímetros sem que as rodas da frente começassem a levantar-se do chão. Junto das calhas havia uma caixa com uma luz verde.  À primeira vista achei que fosse para colocar uma moeda.

Depois, a posição específica e o formato da luz verde levaram-me a pressioná-la com o pé. Mas nada acontecia. Num dos lados desta caixa existia uma inscrição, mas não me detive um segundo que fosse a lê-la (para ser franco, nem posso garantir que tenha realmente tomado consciência naquela altura de que a inscrição existia). Foi então que decidi analisar a razão da “falha”. Colocando-me de lado, repeti o movimento natural para remover o carro do seu lugar, enquanto inspecionava cuidadosamente as rodas encaixadas nas calhas, a forma como os trolleys encaixavam uns nos outros, a existência ou não de algum mecanismo visível que impedisse o movimento, ou talvez um objeto encalhado nas calhas ou nas rodas. Nada. Foi então que os meus olhos pousaram novamente na tabuleta. Ali estava, afinal, uma pista para desvendar o mistério. Apresentava uma inscrição em duas línguas na qual se podia ler “Ao sinal verde, pressionar o travão do carro e retirá-lo suavemente”. “O travão? Então, isto tem um travão, bem me parecia!” – pensei para comigo. Efetivamente, por baixo da pegadeira do carro, existia uma barra longitudinal que podia ser agarrada com a ponta dos dedos. Além do mecanismo ser praticamente invisível, todo o conceito contrariava a minha experiência acumulada, de que se deve pressionar o travão para parar, não para andar.

Após algumas tentativas frustradas, o carro libertou-se finalmente do seu trinco e, acompanhando-me, deslizou suavemente até à presença da minha família, que já se questionava com a minha demora. Tudo isto ocorreu em pouco tempo, talvez um par de minutos, mas ilustra perfeitamente como um dispositivo (físico ou virtual) pode complicar a vida das pessoas no dia-a-dia, tanto ao nível da acessibilidade como da usabilidade, quando o seu design não é centrado no utilizador (a simples presença de uma inscrição com instruções é uma indicação clara de que o design do sistema apresenta problemas).

No contexto das tecnologias de informação e comunicação (TIC), os especialistas em acessibilidade empregam técnicas e metodologias para desenhar e implementar sistemas acessíveis por qualquer pessoa, independentemente da sua condição física, cognitiva, social, etc. É uma batalha pela “democratização” do acesso à informação, e há quem garanta que se um produto ou serviço digital tiver esta propriedade, a que se dá o nome de “acessibilidade”, todos somos beneficiados (não apenas as pessoas com necessidades especiais). Contudo, a acessibilidade é apenas um passo no sentido de uma melhor experiência de utilização das TIC. Para lá da acessibilidade, temos a usabilidade e o que se denomina hoje User Experience. É claro que há muito por fazer no campo da acessibilidade no contexto das TIC. Mas acessibilidade, só por si, não basta. É preciso ir mais além. É preciso garantir que a utilização das TIC é eficaz, eficiente e agradável.

Utilidade versus usabilidade

A aceitação de um artefacto pelas pessoas, seja ele um sistema, um serviço, uma aplicação, um produto ou um site, depende, em grande medida, da sua adequação ao seu fim. Em primeiro lugar, o artefacto tem de ser útil. E se o for, a sua utilização torna as pessoas mais eficazes. É o que acontece, por exemplo, com os telefones móveis: permitem fazer chamadas telefónicas em (praticamente) qualquer lugar (quando entramos numa zona sem rede, o telefone móvel perde utilidade). Similarmente, têm utilidade o sistema Multibanco, a Via Verde, a grande maioria dos sites web e praticamente todos os sistemas de informação existentes nas empresas. Em segundo lugar, a aceitação do artefacto depende da sua usabilidade, ou seja, da capacidade do sistema para facilitar a realização das tarefas com o menor esforço possível no menor espaço de tempo possível. Se o artefacto possuir estas propriedades, a sua utilização torna as pessoas mais eficientes. Os telefones móveis sofreram uma evolução clara no sentido de uma maior usabilidade. Apesar de os telefones mais antigos serem úteis, não eram certamente tão fáceis de utilizar como os que temos hoje em dia.
O sistema Multibanco alia eficiência à sua utilidade (consigo levantar dinheiro com menos esforço e mais rapidamente do que ao balcão do banco). A Via Verde elimina o esforço e o tempo despendido com pagamentos nas portagens. Quanto aos sites e aos sistemas de informação empresariais… ainda estamos longe dos padrões aceitáveis.

Situação atual em Portugal

Imaginemos o seguinte cenário inusitado: um arquiteto, sem pretensões de extravagância, coloca as portas de uma habitação a dois metros de altura do chão. Objetivamente, as portas estão lá. Tecnicamente, é possível utilizá-las para entrar e sair de casa, nem que para isso seja necessário o esforço adicional de utilizar uma escada ou um escadote.  E, não fosse o senso comum denunciar o ridículo da situação, poder-se-ia mesmo dizer que o caderno de encargos fora respeitado. No entanto, não seria uma casa fácil de habitar. Implicaria um esforço diário inaceitável. Nenhum comprador aceitaria adquirir uma habitação com estas características.

Infelizmente, no mundo das TIC estes incidentes ocorrem com grande frequência. Quantas vezes tivemos de enfrentar um programa que insiste em pedir-nos os mesmos dados, repetidamente, apesar de nos parecer estarem corretamente escritos, fazendo-nos perder horas de trabalho (e a paciência)? Ou quando desistimos de comprar um artigo num site de comércio eletrónico porque o formulário de registo se afigura demasiado extenso? Os arquitetos de software e engenheiros informáticos que, do ponto de vista técnico, são irrepreensíveis, têm enormes dificuldades em produzir soluções centradas nos utilizadores. E é bem compreensível: a complexidade dos sistemas de informação é de tal ordem, as minúcias do código tão subtis, os requisitos funcionais tão abrangentes, a escrita de algoritmos tão absorvente, e as exigências de performance e fiabilidade tão prementes, que é um verdadeiro desafio (para não dizer mesmo um milagre) que um especialista de informática se lembre ou queira adicionar à equação o fator humano, tão imprevisível e subjetivo.

Consequentemente, o software (seja um site, uma aplicação móvel, um CRM ou um Call Center) sofre de um desajustamento face às características, limitações e expectativas do seu público-alvo. A resposta típica que se ouve é uma variante de “Os utilizadores que aprendam e se habituem – eles não vão ter formação de qualquer maneira?”. E, inexoravelmente, as “portas digitais” são colocadas como que a dois metros de altura do chão, transformando-se em verdadeiros obstáculos à realização fluida e eficiente das tarefas por parte dos utilizadores.

Soluções

Qualquer engenheiro de software sabe, através da sua própria experiência, que é impossível escrever um programa informático sem cometer erros (os chamados bugs).  É impossível, pois a nossa natureza humana é limitada. Simplesmente não conseguimos antever todas as consequências e derivações das nossas decisões. Cometemos erros porque somos humanos, e “herrar é umano”. É também por essa razão que nenhuma empresa de software minimamente credível lança um produto para o mercado sem antes o testar e submeter a processos metodológicos que permitam identificar sistematicamente a existência de bugs ou defects. Depois de encontrados, os problemas são devidamente corrigidos. Este esforço permite aproximar o software do seu potencial de utilidade.

Da mesma forma, é impensável e imprudente assumir que o software está, à partida, livre de problemas de usabilidade. O designer de interação (quando existe) também tem dificuldade em prever todas as consequências e derivações das suas decisões de design. Como é possível, então, que os produtos sejam lançados no mercado ou instalados em ambientes empresariais sem que antes sejam testados e inspecionados do ponto de vista da usabilidade? Sejamos rigorosos: na realidade, o software é sempre testado — ou pela empresa que o produz, ou pelo mercado. Quando é o mercado o primeiro a testar a usabilidade do software, o impacto é imprevisível. Para reduzir os riscos, os especialistas preconizam que qualquer software deve ser testado com utilizadores e inspecionado sistematicamente. Este esforço permite aproximar, empiricamente, o software do seu potencial de usabilidade.

Existem numerosas metodologias e ferramentas disponíveis para ajudar os especialistas em usabilidade. A experiência diz que alguns dos mais importantes são a prototipagem, testes com utilizadores e inspeção sistemática (também conhecida como avaliação heurística).

Prototipagem

A prototipagem consiste no desenho da interface da aplicação em estágios precoces, no ciclo de desenvolvimento de software. Os protótipos são testados com utilizadores e refinados, iterativamente, até atingirem o nível de segurança desejado. Esta metodologia permite reduzir substancialmente os custos de desenvolvimento de software, uma vez que as alterações na interface ocorrem antes de haver uma única linha de código escrita, utiliza recursos baratos e flexíveis como o papel e testes informais, e elimina a necessidade posterior de rework, suporte e formação de cliente e colaboradores.

Testes com utilizadores

Os testes com utilizadores encontram um paralelo nos testes funcionais para a deteção de bugs e defects no software. Em vez de software testers, a metodologia implica o recrutamento de utilizadores representativos do público-alvo para a realização de tarefas específicas no sistema. A identificação de problemas de usabilidade ocorre pela observação dos utilizadores por parte de especialistas treinados na facilitação dos testes. A recolha de métricas de usabilidade complementa o estudo com dados quantitativos que podem servir de benchmark em iterações posteriores de testes ou em análises competitivas.

Avaliação heurística

Finalmente, a inspeção sistemática da interface e da interação com o sistema (ou avaliação heurística) permite identificar problemas de usabilidade complementares aos dos testes. Tipicamente, a inspeção é realizada independentemente por uma equipa de especialistas. Os resultados são coligidos e seriados pela sua severidade e frequência.

Impacto da usabilidade

Estudos1 revelam que o retorno do investimento em usabilidade é substancial: melhorias na ordem dos 100% em vendas online ou taxas de conversão, 150% no aumento de tráfego em websites e 161% de aumento de produtividade na utilização de intranets e outros sistemas de informação empresariais. Genericamente, o impacto de uma intervenção ao nível da usabilidade inclui os seguintes benefícios (entre outros):

  • Aumento das vendas online em sites de comércio eletrónico;
  • Aumento da conversão de utilizadores visitantes em registados;
  • Aumento da produtividade dos colaboradores e consequentes poupanças;
  • Redução dos custos de suporte/help desk;
  • Redução dos custos de formação aos clientes e/ou colaboradores;
  • Aumento da satisfação dos clientes/utentes;
  • Aumento da notoriedade da marca.

Conclusão

Consideremos qualquer produto ou serviço na área das TIC. Por exemplo, um sistema de apoio ao atendimento telefónico de clientes. Existem três figuras principais envolvidas neste software: quem paga para produzir o software (a empresa cliente), quem produz o software (a software-house) e quem o utiliza (os colaboradores da empresa cliente). Tipicamente, estes últimos não têm assento na mesa de trabalho durante o levantamento de requisitos, o design ou a implementação do software. Os especialistas de usabilidade são representantes dos utilizadores, como advogados de defesa. Procuram que os utilizadores sejam mais eficientes e estejam mais satisfeitos com a utilização do software. Se os seus colaboradores se queixam da lentidão do sistema ou da dificuldade em realizar a mais simples das tarefas, se o seu site não tem a taxa de conversão desejada e a previsão de vendas online demora a ser atingida apesar das campanhas de marketing, se o número de queixas dos seus clientes não para de crescer a cada release do seu produto, … tome o controlo da situação e procure um especialista em usabilidade.

 

 

1 Um excelente estudo sobre o retorno do investimento em usabilidade pode ser encontrado em www.nngroup.com/reports/roi