Ao longo da vida, cheguei à conclusão que as reclamações por escrito são das formas mais eficazes de expor problemas e, consequentemente, de melhorar a sociedade. Problemas esses que tanto podem ser:

  • um buraco numa estrada por onde passamos todos os dias, que nos pode furar um pneu ou, pior, provocar um acidente;
  • pedras soltas da calçada, que impedem pessoas com deficiências visuais e idosos com dificuldades motoras de caminhar pelo passeio, obrigando-as a desviarem-se, seguindo o seu curso, perigosamente, pela estrada;
  • um sistema informático, tão difícil de usar pela maioria dos professores, que estes têm de recorrer aos sindicatos ou a colegas mais versados em informática para conseguirem candidatar-se ao concurso externo de contratação de professores.

 

Reclamações e design centrado no utilizador

Para a minha área, User Experience Design, analisar as reclamações ou comentários das pessoas é uma atividade valiosa, da qual não prescindo.

Em cada novo projecto que abraço, faço questão de ouvir através duma conversa informal o que as equipas de apoio ao cliente têm para partilhar sobre as maiores frustrações das pessoas que lhes ligam. Qual era o problema? Porque procuravam ajuda? Eram situações esporádicas ou comuns a outras pessoas?

Paralelamente, vou aprofundar na internet o que as pessoas estão a desabafar:

Para além disto, a zona de comentários nos vídeos do Youtube e as redes sociais onde a empresa ou organização está presente também podem ser ótimas fontes de informação para conhecer as frustrações dos utilizadores.

 

Desabafar nas redes sociais

É engraçado ver como um post do Facebook ou do Instagram, com uma campanha ou a promoção de um novo produto ou de uma nova funcionalidade, perde o seu propósito inicial quando os comentários que são deixados pelas pessoas não são, na sua maioria, elogios, mas pedidos de resolução de problemas, que não foram atendidos, ainda estão em análise ou podem nunca ter sido analisados por ninguém.

Algumas pessoas, quando ficam frustradas e não lhes é oferecido o produto ou serviço conforme as suas expetativas, acabam por revelar a sua indignação nos locais que lhes estão mais à mão. Isto também acontece porque muitos produtos e serviços têm o hábito de esconder os contactos e linhas de apoio dos seus sites e aplicações – como se isso fizesse magicamente evaporar os problemas da interface ou as dúvidas dos clientes.

Veja-se o caso de um conhecido homem da rádio, Nuno Markl, e a sua dificuldade em perceber como se abrem as persianas do Hotel Sheraton, no Porto, e a forma como pede ajuda sem ser diretamente aos funcionários do hotel:

 

Problema hotel Nuno Markl - UX

 

As minhas reclamações

Ao longo dos últimos 20 anos, devo de ter feito perto de 500 reclamações. Alguns problemas que apontei nas reclamações ficaram resolvidos, outros nem por isso.

Fui percebendo o que devia ir melhorando na forma como escrevia e estruturava os conteúdos de uma reclamação para que fossem mais eficazes e o problema que estava a expor fosse efetivamente resolvido.

No entanto, houve uma altura que considero ter sido o ponto de viragem – o momento em que notei uma mudança significativa na eficácia da resolução das reclamações que, assertivamente, apresentava. Foi quando passei a escrever reclamações da mesma forma como descrevo problemas de usabilidade em relatórios de UX.

 

A estrutura de uma boa reclamação

Quer a reclamação seja via email, através do formulário do próprio site ou pelo livro de reclamações online, o assunto ou a forma como iniciamos a exposição do problema é fundamental para captar a atenção de quem a recebe e conquistar o seu caminho.

Tal como uma descrição de uma observação num relatório de usabilidade, a reclamação tem de incidir num problema de cada vez. Da minha experiência, baseada nas reclamações que apresentei, noto que as que tiveram uma eficácia maior na sua resolução foram as que se focaram num único problema, por exemplo Buraco no passeio da Rua de Angola, em Coimbra, em detrimento de outra abordagem genérica, da qual nunca resultou nada em concreto, como “Lista de problemas no Centro de Saúde de Mortágua”.

Ser específico é fundamental para dar continuidade à reclamação e para que alguém possa pegar nela e resolver o problema. Reclamações genéricas ou que abordam vários pontos não funcionam, porque se dissipam na atribuição de culpas e responsabilidades entre responsáveis e entidades, muitas vezes de departamentos e mesmo de instituições distintas, e acabam por se perder na ordem das prioridades de resolução.

 

Um exemplo na prática

No Verão de 2015, durante quase todo o mês de agosto, um dos passadiços principais de acesso à praia de Paredes da Vitória, perto da Nazaré, não tinha os últimos dois degraus de madeira. Era comum ver:

  • os pais com extrema dificuldade em ajudar os filhos pequenos a descer ou subir as escadas, ainda para mais carregados com os chapéus de sol, lancheiras e brinquedos de praia;
  • pessoas idosas, com dificuldade de locomoção, a terem que ser ajudadas por duas ou mais pessoas para descerem ou subirem as escadas.

reclamação - ux

A foto

Um exemplo de como enderecei a falta dos degraus foi começar com o registo da evidência, tirando uma fotografia. A foto é a constatação de que o problema existe e é real, e não são apenas palavras ou “opiniões” de que poderá haver um problema.

Se na foto conseguir ter pessoas a sofrerem com o problema, esta ganha mais impacto – os responsáveis que vão receber a reclamação constatam que o problema tem influência no dia a dia de pessoas reais.

 

E a quem enviar a reclamação?

Aqui o “truque” é o mesmo: quanto mais entidades tiverem conhecimento do problema, melhor. Contudo, saber a quem devemos enviar a reclamação pode ser um obstáculo. Entramos no campo das deduções. Se é uma praia, à partida, a Câmara e a Junta de Freguesia poderão ser um bom começo. É necessário pesquisar na internet para saber a que concelho pertence a praia e qual a freguesia correspondente. Depois, torna-se necessário encontrar emails destas entidades de forma a alertá-los para o problema e esperar que tenham as condições necessárias para arranjar uma solução.

É importante juntar o máximo de entidades que eventualmente possam ser responsáveis direta ou indiretamente pelo problema. Entre elas, alguma saberá que o problema é da sua responsabilidade. Daí que se pode colocar o responsável pelas obras municipais da Câmara como a pessoa com mais interesse em resolver o problema e colocar em CC outras entidades que, eventualmente, possam também estar interessadas em que o problema seja resolvido, como, neste caso, a Junta de Freguesia.

 

A descrição do problema

Ser claro, expondo:

  1. Qual é o problema;
  2. Consequências que podem ocorrer se não for resolvido.
  3. Terminar a descrição com uma possível solução para resolver o problema.

No final, despedir-se de forma construtiva e com espírito de comunidade.

Apesar de achar que, por vezes, uma pitada de brejeirice (ex.: Liga os médios, ó palhaço!) pode desbloquear um problema de comunicação rumo a uma solução, no caso das reclamações é mais sensato não ofender a mãe de ninguém, nem enviar o responsável para o topo do mastro da caravela.

Isto porque, do lado de lá, isto é, do lado de quem recebe as reclamações, por estranho que pareça, estão também outros seres humanos, tal como nós. Seres humanos esses que são, muitas vezes, o airbag das reclamações. As pessoas que trabalham nos call centers são os heróis anónimos das organizações, que resolvem problemas que as administrações desconhecem que têm, e que criam inadvertidamente com as suas habituais póias de gaivota.

 

É importante tratarmos com respeito quem recebe a nossa reclamação:
  • vai aumentar a nossa credibilidade e, sobretudo, a credibilidade da nossa reclamação;
  • e, consequentemente, vai aumentar a probabilidade desta ser reencaminhada, e por incrível que pareça, pode mesmo acabar sendo acarinhada internamente.

De forma a deixar claro que o que escrevi visa apenas a resolução dum problema da comunidade, reforço, no fim, com um apelo a um bem maior:

Por uma melhor cidadania.
Filipe Plácido

Assim, quem recebeu a reclamação percebe que a resolução do problema não é somente um ato apenas para benefício próprio, mas algo que vai beneficiar mais pessoas. Somos um país mais pequeno e interligado do que parece: resolver o problema pode até beneficiar a mãe do próprio presidente da Câmara…

 

O resultado

Quiçá, a pessoa ou as pessoas que leram a reclamação, quando passarem por algo parecido, possam replicar o que acabaram de receber, escrevendo também elas uma reclamação. Desta forma espalha-se uma boa ideia, sem prémios, sem pontos, sem reconhecimento público, apenas uma forma altruísta e anónima de melhorarmos este mundo, que é de todos, apesar de, por vezes, não o parecer.

Voltando à falta de degraus no acesso à praia das Paredes, três dias depois de comunicar a situação, recebi um email com fotografia a dar-me conhecimento que o problema já tinha sido resolvido. Três dias…bem bom! Da minha experiência, a média anda nos 30 a 60 dias. Em casos mais extremos pode ir aos 3 anos, ou mais. Mas mais vale tarde que nunca. 🙂

Este pequeno exemplo prova que reclamar de forma construtiva e objetiva funciona e ajuda a tornar o mundo um pouco melhor.

resposta-reclamacao - ux

 

E quando ninguém responde à sua reclamação?

Há outro truque que fui aprendendo com o tempo, que ajuda a obter resposta ou acelerar a resolução do problema. Quando ninguém responde à sua reclamação e continua a passar pelo problema todos os dias, sem notar alterações, ou constata que nunca mais recebeu nenhuma resposta, use a técnica do “RESEND”.

Se for um email, procure a mensagem original que enviou e reenvie a todos os envolvidos, através da opção “Responder a todos”, colocando no campo CC (com conhecimento) outros emails de entidades que veja que terão interesse ou estejam de alguma forma relacionadas contextualmente com o problema. Alguns exemplos:

  • Associações de defesa do consumidor;
  • Ordens profissionais;
  • Entidades fiscalizadoras;
  • Ministérios ou Secretarias de Estado da tutela;
  • Comunicação social e imprensa – de âmbito local ou nacional;
  • Associações do sector contextuais à sua reclamação;
  • Entidades públicas e privadas que vivam perto e partilham o mesmo problema;
  • Provedor do cliente (algumas empresas e organizações já possuem esta figura e da minha experiência funciona muito bem).

É importante fazer-se ouvir quando é ignorado. Envolver outras entidades costuma resultar, porque os primeiros responsáveis irão verificar que agora há outras organizações que ficaram a par da sua reclamação e, por sua vez, também poderão vir a pedir justificações do motivo do atraso na resolução do problema. O seu problema passou a ser o problema também de outras pessoas. Algumas delas, que se revêem na sua reclamação, irão reforçar o seu pedido, que também passou a ser deles.

Poderá não se ficar apenas por um “RESEND”. Por vezes é preciso reenviar a reclamação duas, três, ou mais vezes. As necessárias até o problema ficar resolvido. Por enquanto, ainda não pagamos selos nem taxas para reenviar mensagens por email, pelas redes sociais, ou pelos formulários.

 

Afinal as reclamações servem para quem?

Compensa sempre reclamar. As reclamações servem para todos. Seja para ajudar a resolver um problema da comunidade, ou para comunicar a uma empresa que têm um problema (e não é rara a vez que é um problema que não sabiam sequer que tinham).

Os portugueses estão a reclamar mais, mas continua a haver uma percepção de que não compensa reclamar. Os portugueses questionam-se se vale a pena dedicar esforço para fazer uma reclamação, pois têm a percepção de que não compensa o tempo dedicado ou que “Oh… ninguém vai ler o que estou para aqui a escrever na reclamação”.

É importante as reclamações chegarem às equipas de Qualidade, de User experience, de Marketing e de Desenvolvimento, para percebermos em concreto onde está o problema e de que forma afeta a experiência das pessoas e, por consequência, a imagem da nossa organização.

Estudos indicam que solucionar os problemas reportados pelos utilizadores, pelos clientes, utentes e cidadãos, aqueles problemas que enfrentam todos os dias – e que, por vezes, repetem-se várias vezes ao longo do dia – é mais valorizado e aumenta mais a sua satisfação do que receberem novidades de novas funcionalidades.

Há um manifesto em tom de brincadeira, lançado pelo Jakob Nielsen (esse poço sem fim de conhecimento em UX), que pede a todos os engenheiros informáticos do mundo para, durante 2 anos, não desenvolverem mais funcionalidades e se dedicarem apenas à correcção de bugs. 🙂 Similar ao “refactoring”, uma das 12 práticas-chave de Extreme Programming – um período de tempo onde não programamos novas funcionalidades, apenas melhoramos o código existente.

Imagine quão valiosa seria a satisfação dos médicos se os problemas que vão reportando à linha de apoio fossem sendo prontamente resolvidos. Satisfação essa transformada em:

  • motivação e confiança no sistema;
  • e sobretudo, em tempo para ouvir o paciente.

Um médico que tem de interagir com 25 programas informáticos diferentes ao longo do dia, que lhe trazem vários problemas, quer seja de performance, quer seja pela dificuldade em utilizá-los, não quer receber novas funcionalidades. Quer somente conseguir utilizar as funcionalidades que já existem, sem ter de esperar ou perceber como se passa uma receita médica.

 

A ainda má conotação de “reclamar” em Portugal

Olhando para a forma como as reclamações são tratadas em Portugal, há ainda um monumental caminho a percorrer. É urgente investir na simplificação e intuitividade do livro de reclamações, evitando este tipo de formulários e mais este que, em vez de conseguir motivar as pessoas a apresentar a reclamação ou queixa, tem justamente o efeito contrário: encaminhá-las para a compra de mais ansiolíticos.

Uma reclamação é ainda hoje vista por muitas empresas e organizações como uma ofensa, por vezes até como um ataque à própria pessoa. Ao invés, uma reclamação é uma oportunidade de melhoria.

Numa época onde as empresas e organizações contratam reputadas consultoras a peso de ouro para irem ao terreno e investigarem cientificamente os desejos e necessidades dos seus cidadãos ou clientes, por vezes, insights igualmente valiosos e gratuitos já estão internamente nas mãos da empresa ou organização, perdidos no fundo de uma qualquer caixa de email por ler…