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A cada objeto, a cada site ou aplicação, a cada serviço ou processo – a cada torradeira, consulta de dermatologia no Hospital de Coimbra ou contratação online de um seguro de saúde – está associada uma quantidade irredutível de complexidade.

Complexidade esta que não pode ser diminuída nem apagada. Mas que pode, muitas vezes, migrar do utilizador, do cliente, do cidadão, para o sistema – para a empresa e seus programadores, gestores de loja e linhas de apoio.

Enquanto designers, engenheiros e diretores, ver essa complexidade onde outros veem normalidade, permite-nos simplificar as “coisas” que ajudamos a idealizar e a implementar, onde outros param, contentes com o resultado. Permite-nos criar experiências verdadeiramente invisíveis ou facilmente distintivas.

 

Preâmbulo

Em noites solitárias, devoro palestras de Física, repletas de histórias acerca do funcionamento do Universo. Existem muitas histórias e, quando essas histórias são boas histórias, chamam-lhes teorias. Quando essas teorias são boas teorias, apelidam-se de leis. E, de todas as leis que descrevem o mundo, há um tipo de leis conhecidas por «leis da conservação». Entre elas, a mais famosa:

“Na Natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.”
– A Lei da Conservação da Energia, nas palavras de Lavoisier.

Tal como na Física, também no design centrado nas pessoas existe uma lei idêntica: a Lei da Conservação da Complexidade.

Examinar produtos, serviços e processos aos olhos desta lei tem-me ajudado, ao longo dos anos, a encontrar problemas, a esboçar ideias e a debater soluções com as equipas dos projetos em que tenho colaborado.

 

Complexidade

A complexidade está em todo lado: na torneira da banheira do hotel, nos formulários de abrir e fechar atividade da Autoridade Tributária e no protocolo de coordenação e resposta a incêndios florestais.

  • Está tão presente num website “one-page-layout” – dinâmico, «clean» e com linhas modernas – quanto na malparecida aplicação MS-DOS para registo das consultas do Centro de Saúde de Mortágua.
  • Afeta a minha tia Graça, sexagenária com a quarta classe, da recôndita aldeia de Vale de Mouro, e perturba o jovem cosmopolita e «tech savvy» Sebastião Fonseca.

Na nossa multitarefada azáfama diária, até algo tão corriqueiro como passar uma porta se pode revelar uma atividade complexa…

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Inevitavelmente trabalhosa, a complexidade é muitas vezes apenas aborrecida, enquanto noutras algo dolorosa.

Brincadeiras à parte, situações complexas podem:

 

A lei de Tesler

Estamos em 1983. Larry Tesler é, por estes dias, designer de interação na Apple e tenta convencer a gestão a implementar as suas ideias.

Para tal, Larry postula que, tal como acontece com a energia, há uma quantidade inerente de complexidade em cada objeto, em cada página da internet ou aplicação informática, em cada serviço ou processo – em bules de chá, transferências por MB WAY e visitas à Loja do Cidadão – uma quantidade que é irredutível e que, tal como a energia de Lavoisier, não desaparece, apenas pode mudar de sítio.

De forma a tornar esta sua teoria mais credível e persuasiva, Larry empacota-a sobre o astuto nome de: Lei da Conservação da Complexidade.

 

«Isso é mesmo assim»

OK, as coisas têm uma quantidade própria e irreduzível de complexidade… obviamente! Recorrendo à Lei de Tesler, podemos até justificar e desvalorizar as dificuldades sentidas pelas pessoas que interagem com os nossos produtos:

“Pois, isso é mesmo assim, [seguros] são coisas complexas!”

Podemos substituir [seguros] por muitos outros termos: crédito habitação, entrega do Modelo 3 do IRS, cartas da Segurança Social, software de registo de atos de enfermagem, faturas da TV Cabo.

E há coisas que não são complexas; tem pessoas é que, tipo… são uns atadinhos. Não estão com atenção a fazer as coisas. Há malta que nem lê o manual de utilização! Assim é claro que é tudo complicado. E à primeira também é normal… depois de se aprender até é fácil.

O discurso soa-lhe familiar?

 

Onde colocar a complexidade?

Agora a sério: se há complexidade que não pode ser eliminada, então, a pergunta a fazer, tal como questionou Larry na sua altura, é quem é que vai ter de lidar com essa complexidade? O utilizador – cliente, utente, cidadão – ou a equipa de desenvolvimento e de design, de marketing, de produto e de vendas?

Para o sucesso do meu negócio, de quem é o tempo mais valioso? Dois dias adicionais de um designer a simplificar uma interação + uma semana extra de um programador a adicionar inteligência ao código + um novo e poderoso servidor… ou mais 3 minutos por dia do tempo de um milhão de clientes?!

  • Será mais rentável substituir as siglas e códigos, o jargão bancário e os nomes cortados e sem acentos dos extratos das contas do que ter a linha de apoio do banco inundada de dúvidas triviais? Quem nunca perdeu vários minutos a decifrar extratos bancários que atire a primeira pedra.
  • É melhor gastar tempo a escrever uma carta da Segurança Social em linguagem clara, com dados e instruções específicas e personalizadas, ou ter os seus destinatários, nos dias seguintes, a fazerem fila na Loja do Cidadão, para saberem o que fazer com o aviso que receberam no correio?

 

complexidade-segurança social

Consequências da complexidade

Para além dos já referidos narizes inchados, das penhoras do fisco e do pânico nuclear, perder-se clientes ou potenciais clientes é outra das consequências da complexidade: se temos, por exemplo, um site de venda online de sapatos, a nossa concorrência na Internet está a apenas a um separador de distância, fazendo minhas as palavras de Jakob Nielsen. Dá que pensar…

Paradoxalmente ao que é talvez esperado, uma app – ou outro qualquer produto ou serviço – quanto mais barata for, menos complexa tem de ser. É como se um Renault Clio tivesse de ser mais fácil de usar do que um Mercedes Classe A.

Consequentemente, algo gratuito tem de ser muuuuuito simples de usar ou corre o risco de ser trocado a qualquer momento. A única coisa que segura o utilizador ao website ou à aplicação é o seu «reservatório de boa vontade» e a complexidade é meio caminho andado para o esgotar rapidamente:

 

consequências da complexidade

Após esta experiência, se na Norauto mostrarem à Andreia um orçamento, sem lhe pedirem dados pessoais, localização, nem perguntas em francês, qual será a probabilidade de ela fazer a revisão na Midas?

 

A experiência acima, com a Midas, faz reavaliar a ideia que paira por muitas cabeças de que não há nada que as pessoas mais adorem do que passarem os seus tempos livres a preencher formulários, logins, registos e a fornecerem dados pessoais para «efeitos de marketing». Para quem precisa de argumentos numéricos, fica a história do botão de 300 milhões de dólares.

Aos olhos de Tesler…

  • Não devemos ver a mudança de sofisticação do utilizador para o sistema como um custo, mas como um investimento, como um íman de retenção de clientes.
  • Retirar dificuldade de aspetos críticos da interface (seja ela uma aplicação para controlo de fronteiras, um SMS ou um dispensador de senhas na farmácia) é sinónimo de vendas e antónimo de chamadas na linha de apoio.
  • Mover complexidade faz os nossos serviços demarcarem-se da concorrência, proporcionando experiências tanto memoráveis como impercetíveis.

 

Economia da complexidade

Para finalizar o argumento e, pegando novamente nas ideias de Larry, nesta era das interfaces comerciais, os computadores e relógios inteligentes, os automóveis e máquinas de lavar roupa, os SMS e resmas de papel A4, já não são feitos à medida. Deixaram de ser inacessivelmente caros e não correm a passo de caracol – apesar de que, a cada dia sim e dia também, levanto dúvidas sobre o meu telemóvel ter efetivamente «mais poder de processamento que os computadores que levaram o Homem à lua».

O software pode agora ser mais complexo, pois é desenhado e programado apenas uma vez e usado diariamente por milhares de pessoas.

A título de exemplo, podemos estimar os custos da complexidade do SClínico, usado diariamente pelos médicos por esse Portugal fora.

economia da complexidade

Quem não vivenciou já algum destes episódios ao vivo?

 

Vamos imaginar então que, em média:

  1. A Ordem dos Médicos recebe uma queixa por semana relacionada com a complexidade sentida com o sistema. Um médico perde 10 minutos a fazer a queixa e a Ordem gasta 20 minutos a ler e a processá-la.
  2. Um médico depara-se com um problema de complexidade do sistema por consulta. Fá-lo gastar um minuto extra. Um médico dá 10 consultas por dia, de segunda a sexta. Existem 600 médicos no país que sofrem igualmente com esta situação.
  3. A linha de apoio recebe uma chamada por dia para ajudar um médico numa questão de complexidade do sistema. A chamada demora 10 minutos.
  4. O custo hora de um médico é de 30 € (0,5 €/min), de um técnico da linha de apoio é de 6 € (0,1 €/min) e do funcionário da Ordem é de 12 € (0,2 €/min).

Assim sendo, o custo anual em complexidade é de 728 658,00 €. Mais de 3,5 milhões de euros em apenas 5 anos!

Se continuarmos, estimando o custo associado aos também citados problemas de robustez do sistema, lentidão, falta de disponibilidade e dias perdidos pelos utentes, o valor sobe rapidamente para patamares assustadores.

E o SClínico é apenas um dos softwares ao qual os médicos recorrem no seu dia de trabalho. Para além disso, num hospital, os médicos não são os únicos profissionais de saúde a interagir com software problemático. E nem estamos a ter em conta externalidades como:

  • a diminuição da motivação, a quebra do mindset dos médicos e a potenciação de erros involuntários;
  • o stress induzido nos técnicos da linha de apoio, em quem os médicos descarregam a sua frustração;
  • a perceção de incompetência sentida pelos utentes.

De volta à questão essencial: vale ou não a pena gastar tempo da equipa de desenvolvimento para remover complexidade do sistema?

“A menos que tenhamos uma posição de monopólio sustentável, o tempo do cliente é forçosamente mais importante do que o nosso.”
– Larry Tesler

 

Mudar a complexidade de sítio

OK, estamos todos a bordo:

  1. Nós não somos burros; as coisas é que são complexas.
  2. É possível mover alguma dessa complexidade, tornando-as mais simples.

Debrucemo-nos, então, como caso de estudo, sobre este belo e enganadoramente simples, mas bastante complexo, Alfa Romeo:

mudar a complexidade

Usando a Lei de Tesler, onde há complexidade?

  • Coordenar mãos e pés para meter e tirar mudanças é bem complexo (ora relembrem lá as vossas primeiras aulas de condução).
  • Controlar a velocidade do limpa para-brisas, numa noite chuvosa, enquanto se metem e tiram mudanças nas curvas e contracurvas da estrada do Bussaco, com o nosso bebé a chorar no banco de trás, mais complexo é.

E se for o carro a ficar com essa complexidade? O condutor concentra-se na estrada – e no bebé – e o automóvel nas mudanças e nos limpa para-brisas.

Similarmente, num homebanking:

  • O António pode indicar apenas que pretende enviar 200 € para a Maria e o sistema ficar com o trabalho de ver se isso implica uma transferência intrabancária, nacional ou internacional, SEPA, SWIFT ou Target 2.
  • Porque há de a Joana ter de pegar no telemóvel, desbloqueá-lo, navegar até à app do banco, contemplar pela milésima vez a animação do logotipo enquanto a app abre, colocar o PIN de autenticação, ir aos movimentos e varrer a lista a ver se já recebeu o salário? O sistema pode ficar com essa complexidade, dando a boa notícia à Joana, por SMS, no momento em que a transferência é recebida no banco (uma transferência de ordenado tem um código específico que permite ao banco distingui-la das restantes).

 

Complexidade

O Modelo 3 para entrega online do IRS, um manancial de complexidade. Qual é a diferença entre anexo A, B, H ou anexo laranja, pêra e banana? Entre quadro 2, 3 e 4 ou quadro pão, vinho e torresmos?

 

Finanças! Bora lá pensar em grande:

  • E se… o «Sujeito Passivo A» poder meramente enumerar e confirmar rendimentos e despesas do ano anterior e o sistema tiver o trabalho de ver se estes vão para o anexo A ou H, se vão para o quadro 2 ou 5, se é melhor serem tributados pela categoria A ou B, se é preferível fazê-lo em separado ou juntamente com a sua amada «Sujeita Passiva B»?
  • E se a Segurança Social comunicar com as Finanças para a Alexandra não ter de preencher anualmente o Anexo SS do Modelo 3 nem a novíssima e cativante Declaração Trimestral para trabalhadores a Recibos Verdes?

E não é só nas coisas grandes – como fazer uma compra online sem ter de me registar – também nas coisas pequenas e mundanas é importante retirar complexidade. As pequenas chatices do dia a dia (assim como as derrotas do Benfica, na Luz, com o caraças do Tondela) vão acumulando e damos por nós, em casa, à noite, cansados e irritados sem saber bem porquê.

Pequenos detalhes podem ter um impacto significativo: mostrar o nome do titular da conta no momento que estamos a fazer uma transferência não só nos permite fazer a operação mais rápido, pois não confirmamos e reconfirmamos os dígitos do IBAN, como também nos dá muito mais confiança de que o nosso dinheiro não vai parar a uma conta alheia.

Mover complexidade parte de:

Questionarmos persistentemente o porquê das coisas:

  • Porque tem mesmo o utilizador de indicar esta informação?
  • A empresa não tem já algures estes dados?
  • Não podemos perguntar isto mais tarde?
  • O sistema não consegue deduzir ou inferir isto?
  • Será que não podemos ser mais específicos neste ponto?

Questionarmos em conjunto com os especialistas de IT e os juristas da nossa instituição, as equipas que estão no terreno e o departamento de marketing. Design de interação é um desporto de equipa.

 

Outras formas de simplificar

Chutar complexidade para o sistema nem sempre é óbvio, nem fácil, nem barato. Mas também não é a única forma de simplificar coisas. A Lei da Conservação da Complexidade não é uma LEI, inviolável como as leis da Física; é apenas mais uma lente útil para vermos interfaces.

Existem 3 formas de remover sofisticação das invenções que nós, macaquitos, vamos arquitetando desde os primórdios da humanidade – da janela da cozinha, ao website do restaurante do senhor Inácio, até ao concurso nacional de colocação dos professores contratados. São elas:

complexidade - uxpm

Aumentar a usabilidade

Como especialista de usabilidade, tornar as coisas mais fáceis de aprender e mais eficientes de utilizar – isto é, torná-las mais familiares – é algo que me está perto do coração. Mas sem me alongar muito e, retomando o nosso caso de estudo, o Alfa Romeo, isto traduz-se em, por exemplo: estudar qual é a melhor organização, o melhor local, o melhor tipo de manípulos, a melhor simbologia e terminologia para o sistema de ar condicionado.

Já no site da Zara ou na aplicação de monitorização dos postos de carregamento elétrico MOBI.E, aumentar a usabilidade pode passar por:

  • ajustar a navegação principal às tarefas mais frequentes;
  • melhorar a clareza e pertinência dos textos;
  • otimizar a eficácia dos resultados da pesquisa.

Apesar de nem sempre ter um impacto muito visível, de não provocar um «Uau!», melhorar a usabilidade dos nossos produtos e serviços nunca deve ser descurada. Ninguém tem uma boa experiência numa casa onde a canalização não funciona corretamente.

Testar, testar, testar…

O melhor caminho para ter bicicletas, centros de saúde e apps de fotografia mais usáveis é testá-los com pessoas (tópico a esmiuçar num artigo futuro). Com utilizadores reais.

Testar o mais cedo possível, testar esboços e protótipos, testar a concorrência e o produto que já temos no mercado. Testar, refinar, voltar a testar, voltar a refinar…

Serão feitos regularmente testes de usabilidade ao SClínico com médicos de várias especialidades e com diferentes aptidões tecnológicas?

Retirar funcionalidades

Matar capacidades de produtos e serviços existentes, ou não incluir propositadamente certas opções em projetos novos, é outra forma, algo controversa talvez, de simplificarmos coisas. Um exemplo notório é o Google Docs: uma versão propositadamente reduzida do Microsoft Office.

“Tanta da complexidade do software advém de tentar que uma coisa faça duas coisas.”
– Ryan Singer, Estratégia de Produto na Basecamp

O sucesso da iniciativa está em escolher corretamente o que deixar e não deixar de fora, focando-nos num público-alvo mais restrito. Cada funcionalidade que adicionamos ao nosso produto incrementa a complexidade do nosso design. Tornar o nosso produto mais completo, com o desejo de o melhorar, pode ter o efeito contrário e degradar a experiência dos utilizadores.

Regressando pela última vez ao nosso belo carro italiano, o que poderíamos retirar para diminuir a sua complexidade?

  • Se os dados indicam que o carro é sobretudo usado por homens solteiros, podemos ponderar tirar todo o painel de bloqueio de portas e sistema de controlo de janelas que existe junto do condutor.
  • Vamos imaginar que 95% das pessoas usam o carro no modo em que o receberam. Se calhar, na próxima versão, não temos botões para ligar o modo desportivo ou para desativar o ESP no tablier.
  • Será que a maioria das pessoas vai sentir falta de poder ajustar a altura dos médios e a intensidade da luz do painel de instrumentos?

 

retirar funcionalidades

Para nos lembrarmos das dores de design que advém de enfileirar funcionalidades e mais funcionalidades nos produtos, na Tangível temos bem visível o bumper sticker: “Mais escolhas, mais chatices.”

 

E voltando também, por uma última vez, ao mundo do software, dos websites e aplicativos, retirar funcionalidades pode passar por identificar:

  • páginas que não são consultadas;
  • definições que são pouco usadas;
  • ou produtos que são menos adquiridos.

Muitas vezes existem funcionalidades e conteúdos apenas porque alguém importante «pediu», como o sempre relevante organograma da empresa ou a dinâmica e apelativa tour pré-login com GIFs animados.

retirar funcionalidades

Os utilizadores fogem das apresentações das apps quase tão rápido quanto do ecrã de termos de utilização.

 

Devemos igualmente questionar funcionalidades a construir somente porque refletem os hábitos e desejos das pessoas internas ao projeto – os gestores, diretores, programadores, financeiros e marketers – todos eles apaixonados tecnológicos, altamente lógicos, proativos e persistentes. Utilizadores extremos com hábitos e necessidades diametralmente antagónicas às pessoas reais que usam ou vão usar o produto ou serviço.

  • Será que o utilizador médio quer mesmo usar a filtragem avançada, ordenar a tabela por nome descendente e agrupar os itens por tipo? Provavelmente não.
  • Será que o cliente típico tem 4 cartões de crédito, 3 de débito, faz dezenas de compras por dia e tem o hábito de ir confirmar o sucesso de cada uma das operações e guardar cuidadosamente o comprovativo em PDF no seu telemóvel? Hummm…

 

Retirar funcionalidades ponderadamente

Enquanto que, para mover complexidade é fundamental debater ideias entre múltiplas pessoas da empresa, e para melhorar a usabilidade é essencial executar testes regulares com utilizadores, para retirar ou deixar funcionalidades de fora é crítico ter dados sobre:

  • quem são os utilizadores que queremos atingir e quem são os que vamos deixar propositadamente de fora;
  • que tarefas fazem frequentemente e que informação é mais procurada, o que são necessidades básicas e o que é visto como indiferente.

Tal consegue-se combinando múltiplos métodos de investigação, desde entrevistas contextuais e analytics, a estudos de campo e análises Kano.

 

«O rei vai nu!»

Se for professor ou enfermeira, manobrador de gruas ou treinadora de judo, talvez lhe esteja a passar pela cabeça, neste momento, algo parecido com:

“Epá, não fazia ideia de que as coisas complicadas podem ser mais simples! Mas eu sou apenas o utilizador, o cliente, o utente. Posso fazer algo para ajudar?”

Pode. Tem duas tarefas tão importantes como as minhas e das equipas de projeto:

  1. Aplicar um tabefe à Archie e a quem lhe responder: «Oh, então isso é tão simples, já não te lembras? É só ires ali e depois acolá e fazeres isto e depois aquilo… e já está!».
  2. Reclamar. Exponha de forma assertiva as suas dificuldades e frustrações, com um certo website ou aplicativo, com uma carta, um aviso ou um edital, com a porta da loja, as placas de sinalética (ou a falta delas), ou outro qualquer serviço ou processo.

Não se sinta estúpido por não conseguir entregar o IRS sozinho, por se perder no hospital ou por não se lembrar de que tinha de levar o seu carro “novo”, agora com 5 anos, pela primeira vez à inspeção periódica.

A jantar num restaurante, se reparar que a faca está suja e mal afiada pensa para consigo: «Sou mesmo burro! É só limpá-la ao pano e fazer mais força a cortar o bife.». Não. Muito provavelmente, chama o empregado e pede-lhe educadamente uma faca limpa e bem afiada: o problema não está em si, está na faca.

  • Faça o mesmo em relação a contratos de seguros de saúde com 120 páginas em texto com tamanho 8pt, impregnado de termos médicos e jargão jurídico.
  • Em relação à confusa forma de marcar as salas de reunião na intranet da empresa onde trabalha.
  • Sempre que não conseguir perceber de que se trata o movimento de 2,58 € que lhe apareceu no extrato da conta deste mês.

Queixe-se pessoalmente ou, de preferência, por escrito. Como diz o ditado: «As palavras voam, mas os escritos ficam.». Envie a sua reclamação por email a várias entidades. Deixe críticas nas app stores. A sua voz irá fazer a diferença, acredite:

  • Incomoda e aborrece pessoas importantes, que não querem ser chateadas com detalhes, motivando-as a insistir com os seus trabalhadores para que os problemas sejam resolvidos.
  • O seu problema concreto chega eventualmente a pessoas como eu, dando-nos não só pistas importantes para fazermos melhores designs, como também argumentos para priorizar a sua correção.

Deixo uma palavra pessoal de apreço a todos os que dispensam um pouco do seu tempo a reclamarem quando sentem dificuldades em produtos e serviços com que se deparam no dia a dia.

Sugiro-lhe um artigo publicado anteriormente no nosso blog sobre reclamações, que o pode ajudar a fazer boas reclamações.

NOTA: Não estou a dizer que o complexo SISone4ALL, para controlo de bens e pessoas procuradas na União Europeia, tem de ser tão fácil de usar como uma simples faca de cozinha. Apenas que, em ambos pode haver complexidade desnecessária. E haverá certamente mais no primeiro caso do que no segundo :P.

 

Em suma…

  • Tudo o que criamos no nosso trabalho e usamos no nosso dia a dia – uma varinha mágica, um decreto-lei, um sistema de controlo aéreo – tem uma quantidade de complexidade inerente e irredutível.
  • Na era comercial, onde o software é programado uma vez e usado regularmente por milhares de pessoas, quem tem de suportar essa complexidade? O utilizador ou o sistema, o cliente ou a empresa, o cidadão ou o Estado? De quem é o tempo mais valioso para o sucesso do negócio?
  • Mover a complexidade não passa exclusivamente por melhorias estruturais, como ser possível autenticar-se com o telemóvel em qualquer site do Estado. Pequenos detalhes como: “Agendou um alarme para daqui a 8 horas e 23 minutos.” ao invés de: “Alarme gravado com sucesso”, têm também um impacto relevante na vida das pessoas.
  • Devemos recorrer à Lei da Conservação da Complexidade para promover a mudança, educando as equipas e stakeholders de que as coisas não têm de “ser mesmo assim”. Mudar a complexidade é um trabalho de equipa.
  • Existem mais formas de descomplicar um objeto, serviço ou processo: melhorar a sua usabilidade através de testes com utilizadores reais e deixar de fora ou remover funcionalidades com base em investigação.

 

RESSALVA FINAL: Utopicamente falando, investigávamos e debatíamos e testávamos desvairadamente, ficávamos meses ou anos a fio a implementar as nossas experiências belas, simples e singulares.

Mas mover complexidade – para a app ou para um coitado qualquer no andar -2 do nosso contact center, assim como melhorar a usabilidade – disponibilizando feedback mais específico e formulários mais inteligentes, traduz-se inevitavelmente em esforços monumentais para as equipas de desenvolvimento.

Esforços esses que não devem ser menosprezados. Manter toda esta complexidade debaixo de olho torna as equipas mais lentas, menos motivadas e menos eficientes. É necessário fazer compromissos e chegar-se a pontos de equilíbrio para desenrolarmos a complexidade das nossas vidas.

Mais sobre este tópico no artigo de Julien Zmiro: The hidden cost of design complexity.